c Trambolhão: Maria do Imaginário

quinta-feira, julho 24, 2008

Maria do Imaginário

Vais-te chamar Maria do Imaginário.

Porque foi assim que te imaginei antes de nasceres.

Este foi o nome que recebeu, sugerido à nascença por uma mãe sonhadora e por um pai pouco rígido, que não soube impor a sua opinião perante um ser tão pequenino e indefeso e a uma esposa de idéias pouco assentes na terra.

Poderia ficar Maria do Céu, sempre tem mais cor insistia o marido, ou só Maria, miava quase sem fôlego. Se gostas de coisas diferentes, que tal Maria Zulmira como a minha mãe...Senão, ainda se vai tornar uma cabeça de vento com esse nome, tal como tu, ameaçou baixinho.

Nenhuma das frases surtiu efeito contra o passo decidido e apressado que levava aquela mãe ofegante e de maçãs rosadas ao registo, com a pressa de fazer com que o seu desejo imaginário passasse da intuição para o papel. Carregava o recém-nascido num xaile branco, mas imaginava que trazia nos braços o maior tesouro do mundo, para que nada corresse mal.

O funcionário que a atendeu enterneceu-se e fechou o dossier. A restante família riu-se, a aldeia surpreendeu-se. Então não existe também o Zé da Esperança, ou o Joaquim do Apagão, isto o que não falta é imaginação, concluiu o padre da aldeia no dia do baptizado da menina, cuja mãe deliciada se já imaginava como se estivesse em Roma, a receber a extrema unção do Papa, que elevava perante os milhares de fiéis a vinda desta nova criança ao mundo.

Maria cresceu filha única de irmãos imaginários, escondida debaixo das saias rodadas da mãe, que largavam fios de várias cores ao passearem na estrada apertadinha que levava ao fundo da aldeia, à casa branca de um andar, onde o pai dormitava embalado pelos copos altos de vinho escuro do almoço, sentado num banco de madeira amarelo aquecido pelo sol. Quando as pequenas pernas de Maria corriam mais do que o alcance dos braços da mãe, bastava-lhes seguir o troço imaginário composto pelas várias cores dos fios de cores abandonados na rua para voltar ao refúgio do seu lar.

Se te imaginei assim pequena, perdi-te assim que cresceste.

Nas aulas tinhas por hábito conversar com amigos imaginários, com quem discutias as soluções dos problemas mais díficeis, baralhando a professora num rodopio de respostas múltiplas que se soltavam dos teus lábios como as amoras brotam das silvas selvagens. No recreio corrias tanto como os meninos mais rápidos mas sem safa possível, nas brincadeiras cor-de-rosa eras puxada para ser a filha das meninas que queriam espreitar mais acima do que a sua tímida altura lhes possibilitava.

A tua brincadeira preferida era imitares a professora, enquanto os restantes colegas te observavam com magistral atenção e te tornavas o centro dos seus olhares, sem que isso te envergonhasse. Para isso, dava-te jeito um ponteiro de madeira comprido para imitares com perfeição os seus gestos altivos e profissionais, enquanto punhas os óculos na ponta do nariz, daquela que por necessidade ou não, se ausentava frequentemente da sua classe, vítima de ataques de espirros, curiosamente consolados pelos risinhos e abraços do jardineiro da escola.

Numa tarde quente e sem aragem depois da escola, quando a Dona Esmeralda, cozinheira do café charme da aldeia te perguntou o que querias ser, respondeste sem hesitação, quero ser um mimo, vi um na televisão com um nariz vermelho. Disparate, de onde tiras tu essas idéias, um mimo já tu és minha linda, davas era uma boa pasteleira. Vens comigo aprender para o forno, ensino-te a fazeres o melhor pão de ló aqui da terra. Disparate pensaste tu e tal qual uma enguia, escapaste-te das mãos trémulas desta senhora, ao imaginares que o que ela queria mesmo era pegar em ti e atirar-te para o forno do inferno, onde irias derreter como a tua barbie mirrou contigo a aquecê-la no fogo do fogão. Apanhada na ratoeira, serias o novo petisco apresentado à mesa para atrair os ricos gordos da cidade, enquanto os teus pais se abrigavam desconsolados, nos braços pérdulos um do outros, sem nunca saberem do teu paradeiro. Afinal de contas, pensaste tu, a mãe sempre se queixou entredentes de que a comida do café era uma porcaria e que ou a Dona Esmeralda investia nuns miudinhos e nuns petiscos ou então não havia quem a salvasse dos dias negros da crise do país.

Durante a noite escura, rezavas com as palmas dos pés viradas uma para a outra tal qual como as mãos apertadas com força e acreditavas que assim os teus pedidos chegariam ao céu. Salvo os dias em que a oração corria bem, outros havia em que os teus pedidos infelizmente não eram satisfeitos com o ardor que se desejaria. E se a curiosidade te corría a alma, rapidamente te auto-convenceste de que existia uma lista extensa de pedidos acumulados lá em cima, cuja dactilografia dos anjos não era rápida o suficiente para despachar ao ritmo de chegada.

Um dia ao passeares perto do rio, reparaste numa tenda lá ao longe. Uma tenda grande, azul. Com cavalos sujos à porta. Um anão a escová-los. Algumas crianças a soltar fogo. Letras grandes preenchidas com cores fortes e muito pó. Foste até mais perto, soletraste o teu nome a um cão porteiro que te rosnou de mansinho e entraste de fininho para dentro da tenda. Foste denunciada pela tromba de um elefante grande, que se elevou perante a tua presença, causando a estupefacção geral. Sorriste em tons de amarelo e balbuciaste qualquer coisa sem nexo.

Apareceu à tua frente um fakir, empunhando uma faca grande que afiava com perícia, apesar dos cabelos pretos ondulados lhe esconderem os olhos e a testa. Deste dois passos atrás. A minha mãe está à minha espera para jantar. Todos se riram alarvemente de ti. São três da tarde, jantas muito cedo, atiçou o fakir. Levantaste-te num ápice e começaste a imitá-lo, com a tua faca imaginária e um andar gingão, de pernas abertas e peito aberto. Inclinaste as costas para trás e começaste a rir de papo cheio, exactamente como imaginaste que ele faria. Ena, que a miúda tem jeito para isto, exclamou o teu sósia. Ouviram-se assobios, que infelizmente não chegaram aos teus ouvidos porque conseguiste fugir, enquanto o Diabo esfregava um olho e fechava o outro.

Chegaste a casa sem sentir as pernas da corrida e foste recambiada para a cama porque, como ameaçou lentamente o teu pai com a boca cheia de pão duro, alguma asneira terá feito para estar assim muda e branca como a cal destas paredes frias.


Fizeste-te mulher, enquanto dormias de olhos abertos


Desde essa tarde não repetiste mais os passos daquele caminho. Bastou uma noite passada em branco e cinco unhas da mão direita roídas até ao sabugo para te aperceberes disso e prometeres a ti própria que nunca mais lá irias. Em vez disso, preferiste ver crescer as tardes a baloiçar no alpendre pendurado na ombreira da casa branca e os anos passaram discretos, mas marcaram a sua passagem no teu corpo.

Maria, anda cá ver uma coisa, gritou a mãe alvoraçada. Uma carta da tua prima Ana. Está escrita à mão, mas não vejo nada sem os óculos. Rezava assim, “Maria do Imaginário, imagina lá uma data para me vires visitar à cidade, tenho cinco dias de descanso por causa duma dor na perna, e mais quatro de férias, dá quase duas semanas sem meter o nariz na loja”.

Entregaste o postal no correio a avisar a tua chegada. Deste um abraço redondo à tua mãe e correste a decorar a mala. Férias do verão, embaladas num comboio a carvão que apitava perto da estação, um gelado de gelo a derreter na mão, enquanto dizias adeus aos teus pais de face queimada e escura, com a outra mão solta.

Após o embarque, uma hora a dormir, meia hora de olhos fechados e um quarto de rebuçado de hortelã entupido na garganta.
Sentou-se um rapaz alto ao teu lado. Sou o Manuel, ouviste em silêncio. Gosto de viajar de comboio, é mais seguro, acrecentou ele na tua imaginação, enquanto tu sorrias em silêncio e ele dobrava as mangas da camisa com cuidado. Para não pareceres mal educada, pensaste, eu vivo ali, naquela aldeia charme, passámos por lá há meia hora, não enganei-me já lá vai fazer duas horas, acertaste as horas com o relógio de pulso da tua mãe e traçaste a perna, para pareceres mais adulta. O estranho levantou-se, saiu e fechou a porta da carruagem sem tirar os olhos do chão. Parecia nem sequer ter reparado na presença de Maria, absorto que estava no seu pensamento.

Que tem umas mãos bonitas, lá isso tem, pensaste com os teus botões. E resolveste espiolhar a mala dele. Porque quem não deve não teme. Lá de dentro, do meio da roupa mal dobrada, surgiu um baralho de cartas amareladas e gastas pelo uso. Um copo de vidro fosco. Um dado com seis faces iguais pontuadas cada uma por seis pintinhas, apanhei-te batoteiro. Um terço com contas cor de rosa... E meia garrafa de whisky, cheia ou vazia, como se preferir.

Maria repôs os objectos no seu respectivo lugar, enquanto ele entrou e fechou a porta devagar. Assustada, com o coração nas mãos, aguardou que ele dissesse algo, mas ele ignorou o olhar dela e ignorou qualquer comentário sobre a sua intromissão.

Para temperar as insónias nocturnas, seguiu-se um diálogo, desta vez sonoro, com muitas imagens à mistura, iguais à cor dos olhos de Maria, que ele imaginava como sendo azuis. O comboio parou na cidade de manhã, travado a ferros pelo maquinista e as lágrimas do seu suor deram as suas boas vindas à plataforma. Ajudas-me a descer, pediu ele devagarinho. Maria deu-lhe a mão, que estava fria, tal como a sua e por isso nenhum dos dois se queixou do facto.

Continuaram a percorrer a primeira rua de mãos dadas, até o labirinto pedonal se complexificar e as ramificações do alcatrão se envolverem num desejo inconfessável e galopante, que os levou a libertarem-se sem qualquer justificação.

Falava de tudo como era seu costume, Maria. Evitava os silêncios como o maestro gere as sinfonias enquanto ele a ouvia como se estivesse a seguir uma pauta sem pausas para respirar. Ela fazia comparações de tudo com a sua aldeia, às quais ele acenava afirmativamente e dizia com um sorriso, gosto mesmo da tua sinceridade.

Almoçaram num café à sombra. Ele escolheu o mesmo que ela para simplificar e pela primeira vez falou sobre si. De como ele imaginava que tinha crescido a sua cidade construída pelas figuras do baralho de cartas, de como ele mentalizou a sua casa onde ia encher o seu copo de forças, ou os seus seis irmãos batoteiros que trazia nas seis faces do seu dado. Por fim, de como ele imaginava a sua fé em Deus, embalada diariamente pelo percurso fiel das contas do seu terço, (atrasado por vezes pelo percurso fiel de algumas gotas de alcóol).

As cinco horas bateram no sino. Maria lembrou-se que tinha combinado com a prima àquela hora, ao que o rapaz afundou ainda mais o seu corpo no banco do café. Cheiras a hortelã, disse ele e passou-lhe a mão pelo rosto para conhecer melhor as suas feições. És como imagino e o sangue afluiu às maçãs de Maria. O silêncio instalou-se na plateia da frente e ambos seguiram o seu caminho, em direcções opostas.

Maria apressou o passo pela primeira vez naquele dia, porque uma inquieta solidão lhe apertava as veias do pescoço e teimava em deixar marcas abrasivas. No minuto em que Manuel calcava as escadas do comboio nocturno com um certo tremor, ela encontrava-se com a prima e desdobrava-se sobre o seu colo a contar a viagem com o desconhecido invisual.

Mas a prima não compreendeu o sentido oculto por detrás dos seus suspiros prolongados e ignorou a verdadeira dimensão do problema. Estava muito mais interessada em relatar os dramas das sua vida adulta entre senhoras de chapéu aberto em bico e resposta afiada na língua e no entremeio lá largava uns gemidos temperados por umas lagrimazitas de crocodilo, em como tinha muitas, mas mesmo muitas, saudades mornas da aldeia. Durante algum tempo, continuaram as duas embaladas na sua própria ladaínha e a prima concluiu que iria ficar solteira até ao final da vida pois nenhum santinho casadoiro lhe valeria para combater maleitas de ter nascido com um nariz de papagaio, que fazia de poleiro para os pássaros do quintal se baloiçarem.

A aldeia ficou para trás

Maria acabou por ficar mais tempo em casa da prima do que era previsto e foi trabalhar para um café não tão charme como o da sua aldeia, mas onde a simpatia dos clientes masculinos marchava de encontro à sua beleza.

De noite, quando o café fechava e as mesas deixavam de ser abanadas pelos encontrões dos clientes, quando o dono varria os vidros partidos que o alcóol tinha chorado de abandono e de raiva, ela sentava-se no pequeno palco de madeira onde os artistas locais tinham entoado as canções melosas da moda, com um refrão pouco adequado às senhoras de idade que lá iam beber o seu chá.

E Maria enchia o palco com as suas criações. Todas as personagens que tinham passado pelo café durante o dia tinham direito aos seus cinco minutos de fama. Os tiques, a maneira de falar em voz alta para todo o café ouvir, os olhos abertos dos rapazes novos a devorar a garrafa de Moscatel longe do seu alcance, os passos de dança miudinhos para não se tropeçar nos pés lavados das damas concentradas, as meninas ligeiramente alcoolizadas e que se perfumavam na casa de banho com esguichos pouco certeiros. O dono do café pasmava de gozo a olhar para ti, excepto quando ele era também o alvo de imitação, ao que fechava rapidamente o café, enquanto tu te zombavas dele, sem medo de seres despedida.

De facto o medo não tocava à porta da sua alma. Não ocupava o espaço raso que ocupa no comum dos mortais. Quando algum homem mais velho se declarava e a pedia em casamento, Maria soltava uma gargalhada inoportuna, pois as marcas abrasivas daquela tarde em que chegou à cidade ainda se faziam sentir no seu pescoço.

Ignorante das ameaças deles ou dos desejos carnais mais agressivos, a todos se impunha um respeito solene declarado pelo seu riso irónico, que fazia os mais apaixonados desistirem de conquistar tais olhos azuis e preferirem contemplar cantoras de swing especadas no balcão, como bonecas sem vida, à espera que uma mão humana lhes desse corda.

Comprou assim um pedaço do céu e tornou-se uma estrela do café, cuja teatralidade ganhava adeptos e os bêbados sorviam lentamente a tua arte.
No entanto a imaginação colorida de Maria foi insuficiente para evitar que o café fosse envolvido pela capa negra dos morcegos da noite. Derrubadas as primeiras fichas do dominó, nem as damas se salvavam de serem atiradas à parede pelo primeiro jogador da noite. Ele era bruto, mas ao contrário de alguns, não se usava da agressividade para esconder as suas fraquezas, a sua natureza desconhecia-se frágil.

O dono do café tremia quando o avistava a entrar no seu estabelecimento, a sua voz frouxa soltava uma boa noite, disfarçada pelo desejo de lhe enfiar um tiro à traição pelas suas costelas adentro. Boa noite, continuas branco e anémico, serve-me qualquer coisa e prepara a minha mesa de jogo, era a sua deixa de entrada em cena.

O silêncio que se impunha era capaz de calar os grilos da noite. As cartas dadas em cima da mesa só pertenciam a um dono, pois o jogador tinha umas mãos grossas e vermelhas que para Maria, conseguiam alcançar qualquer sítio da mesa. Desde que apareceu em cena, este homem só perdeu uma vez ao jogo, e os efeitos foram tão devastadores e inanarráveis no seio do café, que a partir de agora, os seus “forçados” adversários se deixavam bater sem sinais de garra nem empenho, ou qualquer truque de genialidade.

Maria não se deixou intimidar, como os restantes. Pelo menos aparentemente, nunca baixou os olhos quando falou com tal monstruosidade, suscitava-lhe até uma certa curiosidade. Ágil como era, escapava-se sempre dos encontros súbitos com tal personagem nos corredores estreitos perto dos lavados.

Mas passou a subir menos ao palco. Especialmente porque o jogo era o ponto de convergência de todos os olhares no estabelecimento e criava-se à volta dele uma coluna densa, do qual ninguém ousava sair. Para ajudar, as janelas e as portas do café estavam trancadas ao mundo, para evitar desentendimentos precoces com a polícia.

Uma noite o jogador agarrou Maria pela cintura. Já não havia muito mais para apostar. Só podes ser tu o meu último desafio, já tenho quase todos os trunfos na minha mão, até o café me pertence, declarou ele com o rei a dar voltas na barriga.

Olhaste incrédula para o patrão. Ele baixou a cabeça e os seus bigodes murcharam como sinal de consentimento. Em pânico, tentaste soltar-te do jogador, mas ele agarrou com tanta força o teu braço e um leve formigueiro trepou pelo teu corpo acima. Porque é que te haveria de largar, e desta vez foi ele que se riu. Deixa-me trabalhar, berraste quase afónica e as marcas daqueles dedos vermelhos permaneceram alguns minutos no teu braço solto.

Conseguiste fugir. Desenhaste um círculo à volta daquela mesa, despejaste o alcóol etílico pelo risco tracejado, e soltaste um fósforo, enquanto o jogador ardia agarrado às suas fiéis amigas cartas e todos à volta pulavam como índios frenéticos a louvar os deuses na noite escura.

A tua prima acordou-te. Estavas a nadar em água e com a febre a entortar o rumo do barco. Durante alguns dias não foste trabalhar. É dos nervos, menina Maria, refugie-se no seu imaginário e pense em coisas boas, fuja desse café amaldiçoada enquanto ainda é dia, recomendou o velho médico, de lunetas em punho.

Quando voltaste a ter forças retornaste. O ar do café tornara-se irrespirável. O dono abandonara o recinto, fizera as malas e estava a caminho do país vizinho. Ao que parece tinha lá família afastada e sempre gostara mais da tranquilidade do afastamento de sangue da sua tia avó surda, do que ter de prestar contas da sua vida aos seus irmãos conscientes da má vida que levava. Deixara um bilhete amarrotado a Maria.

Querida Maria: És como uma pérola neste Atlântico manchado de sangue. Parte daqui, segue o meu exemplo e serás feliz, segue a tua arte, és o meu mimo preferido.


A bicicleta perdeu uma das rodas

Espreitaste por detrás do cortinado vermelho do palco e observaste o centro da mesa. Lá estava o jogador concentrado em permanecer fechado na sua brutalidade. À sua frente sentava-se agora um novo homem, de óculos pretos escuros, direito, incónito. Não parecia ter medo, mas também não estava feliz. Estava apenas a jogar cartas, e parecia pouco impressionado pela euforia que lentamente se gerava à sua volta. Tinha uma camisa levemente encharcada pelo suor e apoiava-se nas suas costas um pequeno anão, que lhe sussurrava devagarinho as cartas que lhe eram destinadas. Um rei de espadas, uma dama de ouros, um dez de paus, um dois de copas e um ás de copas. Os olhos do anão guiavam a intuição deste homem, havia quem dissesse que esta provinha do reino sobrenatural.

Maria contemplou o espectáculo escondida e reparou que as mãos brancas deste homem constrastavam com o vermelho insolente das mãos agressivas, que pela primeira vez não conseguiam chegar a todos os cantos da mesa. Voltaste Maria, denunciou-a a voz grossa vinda da mesa do jogo. Voltei para te ver perder, respondeste armada com as mãos na cintura. Por momentos, o jogador de óculos escuros distraiu-se e enganou-se a baralhar as cartas.

O jogo prolongou-se pela noite dentro porque a montanhas de fichas dos jogadores era insaciável e ignorava que os olhos da sala se enchiam de olheiras e papos grossos. Quando já quase toda a plateia dormia e Maria se enroscava no divã central, o jogador de óculos escuros pediu um desempate justo. Tirou um dado da mão, anunciou que ia sair o seis,embalou-o na concha da sua mão, e lançou-o em pose sobre a mesa. Saiu de facto o seis. O outro jogador exausto e já sem forças para ripostar sobre a justeza pouco evidente deste objecto, fechou os olhos e apostou que ia sair um cinco, mas por coincidência ou azar do destino, saiu outra vez o seis.

Assim é fácil, ganhou mestre, anunciou baixinho o anão ao seu ouvido esquerdo. O seu adversário, que por estupidez, cansaço ou distracção tinha acabado de ser derrotado. A sua ganância caiu por terra como um peso morto e o naipe de copas eclipsou-se do seu baralho. Bateu com a cabeça na mesa do jogo, uma, duas, três vezes, as vezes que calculou necessárias para ficar inconsciente e esquecer a humilhação que sofria, sentimento até então desconhecido no seu coração.

Iniciaram-se as festividades. Subiram-se os estores, abriram-se as janelas, apareceu o sol. Distribuíram-se bebidas, Maria subiu ao palco e começou a imitar o jogador raivoso. A plateia cantava e aplaudia, mas a euforia generalizada esquecia o contributo do herói da noite, cuja natureza solitária, lhe permitia passar despercebido e permanecer sentado em silêncio junto ao balcão. Na mão restava um copo fosco cheio de whisky. Maria abandonou o palco e foi a única a bater à porta do seu reino solitário.

Cheira a hortelã, disse ele com um sorriso de orelha a orelha e deu-lhe a mão, como ditou o reflexo do seu coração. Ainda está fria como da última vez que lhe toquei, acrescentou. Os olhos de Maria encheram-se de água, de barcos carregados de sonhos ainda por navegar. Beijou ao de leve a sua cara. Quantos anos passaram? Os suficientes para não me esquecer, respondeu Maria, que apesar de ter mil perguntas para lhe fazer, continuava presa a um discurso monocórdico.

Continuas como sempre imaginei, disse ele e passou-lhe a mão pela face, a tactear os sinais do tempo no rosto de Maria. Desta vez já não volto, preciso de te ter comigo nas noites de tempestade. Maria abraçou-o.

Ouviu-se um tiro. Maria sentiu o sangue afluir nas costas dele e passado pouco tempo o seu corpo caiu no chão, apesar de ela o agarrar com força. Por trás estava o monstro com a pistola na mão. A humilhação dele afinal não se limitou a penar isolada no fundo do seu ser e emergiu à superfície, aliada a uma surda raiva de vingança.
Serás como sempre te imaginei, foram as palavras que segredou ao ouvido de Maria e depois fechou os olhos.

1 Comments:

At 9:38 da tarde, julho 25, 2008, Blogger GONIO said...

Só conheço um escritor que tem a tua imaginação: Gabriel Garcia Marquez.
Fiquei maravilhado com este fantástico conto, e as aventuras da tua Maria do Imaginário (que nome tão .. original!).
Consegues surpreender a cada frase, a cada comparação, pelo teu jeito inesperado de dizer as coisas, pela tua originalidade.
PARABÉNS!!! :)
Bjo

 

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