c Trambolhão: Culinária

sexta-feira, novembro 09, 2007

Culinária

O tempo escorre como fios de azeite entornados sob a água a ferver. Bolas de azeite gordas tombam em cima do alho esmurrado na pedra áspera da cozinha. A massa quebrada em dois espalha vestígios pelo chão, mais tarde colados a solas menos dóceis. Agarraste na trança tingida de preta e cortaste-a à bruta com a faca menos afiada da cozinha. Agora parecias um menino, igual ao teu gémeo. Com o coração na garganta, encurralado entre paredes estreitas, decoradas com azulejos batidos na vertical e migalhas implorando para ser engolidas na horizontal.
O canário preso sobe o tom à letra e funde-se na cor do armário amarelo. A touca da empregada esconde uma trança enrolada como uma serpente, tão igual à que tu tinhas. A pele rosada dela transpira o vapor dos cozinhados e as mãos gordurosas embalam o pão a subir ao forno, não tarda nada. Escondeste-te atrás da saia dela. Deixas que ela te despenteie o pouco cabelo que resta. Trazes uma carta escondida na mão, escrevinhada com letras tortas, só se percebe o arroz. Cozido, doce, ah, arroz doce. As mãos gordurosas enfiam-se no frasco do arroz. Os bagos ficam pegados, não caiem facilmente no tacho. Nem a água tira esta gordura brilhante, que teima em tornar-se baça. O leite, traz-me o leite. Estavas distraída. Sentada na mesa, lado a lado com o teu gémeo, controlavam ambos o ímpeto feroz de levar a garrafa de leite à boca. Olhavam um para o outro como que cowboys enfiados à força num rodeo silencioso. Tiras tu primeiro a mão, tiro eu segundo o braço. Rivalidades à parte, o sol descia a escada grande da casa e pelo corrimão trazia velozmente o calor para dentro de casa. Perdeste, gritaste. Sucumbiste e mataste a sede primeiro do que eu. Por isso perdeste. Os bancos oscilaram. Deixa-me em paz, gritou o gémeo. O arroz doce queimou-se. Não vieram a tempo de o trazer. Hoje em vez de leite creme queimado, há arroz doce queimado, gracejaste meu gemelo.
Cada dia trazem novas das casas ao lado. O canário canta alto que o Sr. Vizinho inundou a dispensa de jornais velhos e encheu de água. Fez um jacuzzi privativo ali ao lado. Porque vinha no jornal da região, a anunciar aliciantes propriedades rejuvenescedoras da pasta de papel para a pele. Um quarteirão abaixo, a Sra. Vizinha pendura a roupa no moinho de vento. Assim seca mais rápido, ouviu dizer na Direcção Geral de Energia. Dois blocos à frente, existe o Menino Vizinho, esquelético como um ramo de árvore, que traz dois altifalantes perto dos ouvidos, porque receia perder a notícia de que o rei de Portugal se dobrou a Espanha.
Soltos das amarras culinárias, lá bem no fundo da praia tomam banho os dois gémeos. Por fim, a empregada desembaraça o cabelo e solta a trança ao sal do mar. Os gémeos aprendem a nadar amparados nos cabelos longos e fortes, dando a pedalar os pés, que fortemente batem na água, embora sem grande efeito.

4 Comments:

At 4:20 da tarde, novembro 11, 2007, Blogger pedro said...

Vais fazer o jantar? Grande post culinário. Os segredos da cozinha :-)

Bj,

p

 
At 11:42 da manhã, novembro 12, 2007, Anonymous Anónimo said...

não percebi nada, mas gostei das imagens e principalmente do arroz doce

 
At 9:20 da tarde, novembro 12, 2007, Blogger GONIO said...

Fantástico!
Mas... o que é que isto significa ao certo? :P

Bjinho ;)

 
At 5:54 da tarde, novembro 16, 2007, Blogger Hélder said...

Um caleidoscópio em palavras! :)

 

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