c Trambolhão: O café

terça-feira, janeiro 15, 2008

O café

Trazias no braço um jornal velho, desbotado pelas gotas de água grossas que caíam de um céu chorudo e impaciente. Calçavas umas botas castanhas iguais à cor dos teus olhos e que te concediam um ar de escuteiro adulto. Caminhavas a passos incertos, mas com uma direcção definida. Gostavas de tramar o destino e perdias quase uma hora num trajecto que se fazia nuns escassos dez minutos.

Perdias-te no café da esquina a fumar um café e a bebericar um cigarro, roías as unhas com a paciência salutar de um domingo cinzentão. Decifravas as palavras cruzadas esbatidas em manchas de água, com um sorriso miudinho nos lábios e bebias um gole de café de cada vez que acertavas numa mais ou menos díficil.

O dono do café nutria por ti alguma admiração, escondida por uma certa antipatia. Ou seja, eras um tipo bem parecido, que tinha sempre um sorriso alegre de bons dias, não reclamavas da vida a torto e a direito e parecias ter um emprego estável, ao contrário da maioria dos habitantes masculinos desempregados deste bairro, que se arrastavam entre casa e o café para obterem o lugar na mesa com melhor vista para o televisor e comentarem entre si os passes mágicos da última temporada de futebol.

Lidavas diariamente com os olhares alheios mesquinhos e trocistas, que te viam como um menino armado em intelectual com as suas palavras cruzadas, que em vez de ler algum jornal desportivo, preferia enfiar a cabeça num livro qualquer grosso e com a capa roída pelo tempo.

Ela era diferente, não de ti, mas do resto. Já há dias que seguias aquela figura, apenas repousando o olhar nas palavras cruzadas esquecidas na mesa. Era breve a passagem dela pelo café, mas para ti pareciam horas, era um espectáculo.

Ela entrava, pedia qualquer coisa com uma voz tranquila e só depois se sentava. Cruzava as pernas, mexia rapidamente o café, enquanto procurava qualquer pedaço de si na mala aberta. Movia-se confortavelmente naquele café povoado por homens barulhentos, pois gostava de permanecer anónima no meio do caos futebolístico.

Reparavas nos pormenores, ávido de informação. O cabelo dela armado com jeitos traiçoeiros, as mãos brancas, um olhar de quem quer mais, mais da vida. O teu elo de ligação crescia consoante te apercebias de mais detalhes.

Para os restantes olhares masculinos, ela era transparente, porque não trazia um decote pronunciado ou uma saia fresca. Era como um quadro esquecido que se pendura nas paredes, já fazia parte da paisagem do café. Mas para ti, a sua figura preenchia o espaço, o café e todos os dias um bocadinho a mais da tua alma.

Nessa noite não te conseguias concentrar nas cruzadas. Preferias manter as mãos frias e suadas dentro dos bolsos fundos do casaco e para te entreteres pedias mais um café. Mais uma torrada. Mais um guardanapo.

Ela estava inquieta e saiu apressadamente do café, após ter recebido um telefonema em que não falou, apenas ouviu. Hesitaste mas atiraste umas moedas fáceis para cima do balcão e seguiste atrás dos seus passos.

Vivia num prédio cinzento. Mal pintado e com cinco andares. Onde os moradores corriam as persianas e a estrutura fechava os olhos. Uma porta ferrugenta abria as hostes, uma chave amarela impedia o acesso a estranhos.

Novo telefonema. Ela acabou por entrar e correr as escadas do prédio com os saltos a pisarem o chão pronunciadamente. Ouviste uma porta fechar com estrondo. E viste-a descer minutos depois, carregada com malas e roupa a sair dos sacos mal fechados.

Atravessaste o passeio. Comentaste que a noite ainda era uma criança, mas que a lua a obrigaria a crescer. Deixaste escapar um sorriso mal pronunciado. Preciso de um café, há ali um que está sempre aberto até más horas, sugeriu ela. Precisas de uma conversa com palavras cruzadas, não há nada melhor do que isso para descontrair. Preciso primeiro de me sentar, suspirou ela entredentes.

Caminharam devagar e sem falar mais. Algumas peças de roupa mais leves caíram dos sacos, mas nenhum dos dois deu por isso. Logo que entraram foram submergidos pela nuvem de fumo que se tinha instalado naquele espaço. Os presentes viraram costas e olharam para os dois recém-chegados. Parecia que troçavam deles. Ou que estavam curiosos. Ou simplesmente, que se estavam a borrifar para o assunto e só queriam perceber se era desta que o intelectual do bairro se aproveitava de alguma mulher a jeito.

Afundaram o corpo nas cadeiras e esqueceram os olhares alheios e uma ou outra boca mais arrojada. Beliscaram uma sandes e torceram as mãos um do outro. Já tinha reparado em ti, nas tuas mãos, nos jeitos do teu cabelo... Entornaste o café com os nervos. Reconheceste-me neste antro esquecido? Sim, acenaste com a cabeça. Para ser franca, de ti só reconheci as palavras cruzadas esquecidas nas mesas do café. És parecido com o meu primo. Acho que não és parecida com ninguém, pensaste.

Conversaram sobre banalidades e sobre o tempo. Não revelaste os teus segredos, que ele tanto queria espreitar. Às tantas disseste que tinhas uma boleia à tua espera. Ele perguntou de quem. Um amigo, murmuraste. Tens tantos amigos quantos os dedos das tuas mãos, pensou ele amuado. Um amigo antigo, da idade dos meus cabelos brancos. Deste-lhe um abraço sentido e escondeste a cara no casaco dele. A buzina do carro enervada pela espera, apitou. Ele acabou por não conseguir ver a cara do condutor.

Ela soltou-se dos braços masculinos fracos e voou para dentro do carro velho, apesar de estar carregada de sacos. O veículo desapareceu a alta velocidade. Pela primeira vez, desde há muito tempo, sentiste-te tonto. Com a cabeça a andar à volta e os olhos húmidos, do fumo do café, do fumo do café, repetiste para contigo mentalmente.

Sentaste-te outra vez na mesa do café. Refugiaste-te nas palavras cruzadas. Encontrar algo fortuito quando não se espera. Onze letras: Serendípias.

O dono do café aproximou-se de ti com as costas dobradas. Está na hora de fechar. Não pense mais nisso. Ela não é boa espécie. Estavas alheado do mundo. Sim, ela, a "Russa" como lhe chamam. Anda por aí aos caídos com a vida. Já a vi aí passar na rua com três ou quatro homens diferentes. E tudo na mesma semana, veja lá.

A vida não passa dum jogo de palavras mal cruzadas. Fechaste o livro e rumaste a casa. Amanhã é outro dia. Amanhã é dia de trabalho. Deste um pontapé numa pedra. Magoaste-te. As botas de escuteiro desta vez não te protegeram.


3 Comments:

At 8:48 da tarde, janeiro 24, 2008, Blogger GONIO said...

Inês, não sei como o fazes, mas os teus contos, textos, seja o que for, trazem sempre qualquer coisa que apenas sugeres.
É tudo tão poético, tão forte e tão leve, tão visual... Cada palavra agarra-se à seguinte como uma corrente, e levas-nos assim pela mão pelos labirintos das palavras até à porta do coração.
Só tu...!
Bjinho grd

 
At 11:54 da manhã, janeiro 25, 2008, Blogger Gracinha said...

Inês... Gosto muito, muito de te ler. Um beijinho!

 
At 1:58 da tarde, janeiro 25, 2008, Anonymous Anónimo said...

Isto parece-me Literatura!!!!!

 

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