c Trambolhão: Solidão

domingo, novembro 05, 2006

Solidão

Era um menino só.
Que vivia num mundo transparente mas opaco, numa clepsidra verde magnética como a cor dos seus olhos. Às escuras, acodia com os seus finos magros braços para chegar à luz do candeeiro no alto. E tirava fotografias muito depressa, cujo flash ininterrupto em cadência máxima registava o odor do primeiro fôlego, do dia em que cortou o cabelo denso, da t-shirt nova, do quarto sem móveis, do Verão a anunciar.
A personagem de tais composições era sempre a mesma, porventura, pioneira de um sonho sem cadência. Quando se sentia só, olhava para o album virtual e reconhecia-se na sua face branca, e arranjava assim desculpas para não aguentar a presença dos outros.
Mesmo no dia do seu aniversário, esta máquina tornava-se na sua melhor amiga.
Ela tinha 60 anos. Podia não tirar fotos mas a sua habitual presença no restaurante ao domingo registava um flash ininterrupto em cadência máxima. Sentada na mesa do costume, olhava o infinito e contemplava os botões da cadeira. Falava com o ar enquanto o marido folheava o jornal. As palavras sim e não eram essenciais, mas o resto não.
Adoçava sempre o café com restos de açúcar prendidos nos lábios secos e finos, pois este era o único momento da sua vida em que se podia adoçar mais, em que podia saborear sem se culpar de excessos, em que podia erguer a taça, sorrir e brindar ao despropósito. Neste jeito de menina, baralhava as pulseiras nos braços também finos, tentando seduzir embora sem êxito, o outro lado surdo e indiferente ao seu som charmante.
Após a sopa quente, seguia-se uma sobremesa e uma conta, que era sempre paga pelo Sr. Saíram ilesos, leves, frescos, como que soberanos de si próprios. O casal deu o braço, (o braço magro da Rosário ficara mais uma vez submerso) e ela lá foi puxada mais uma vez para a dança das vaidades mundana, de que se já se cansara há largos anos.
A franja da Irene era espessa. Uma cortina que se abatia sobre o mundo, como cortinados a bailar ao vento. Adormecia agarrada a um cobertor, com as mãos presas uma na outra. Era pequenina como uma formiga e andava sempre apoiada nos seus passinhos mínimos. Ela de facto não andava, saltitava como uma barboleta divertida. O seu hobby preferido era esculpir soldadinhos de madeira com a navalha, aliás já tinha conseguido reunir um exército navegante, cheio de força e ânimo para superar as calejadas dos meninos pequeninos. A Irene adorava pentear o cabelo vezes e vezes seguidas. E nunca despediçava uma oportunidade para espreitar com os olhos brilhantes o café do Sr. Mário. Nunca entrava, ficava à porta apoiada de bicos de pés, a espreitar. Meditava alguns segundos e suspirava sem cessar, contemplava o interior com aguçada curiosidade. Adorava espreitar o casal maravilha, tão elegante na sua pose, tão seguro, invejava secretamente a sua felicidade e a sua união, a sua cumplicidade. Era assim que imaginava o seu casamento secreto.
Neste momento regressava a casa. Pelo caminho lembrou-se de ligar ao seu irmão fotógrafo, para celebrar os seus 27 anos, e talvez assim, conseguir arrancá-lo da sua câmara escura para um café.

4 Comments:

At 11:33 da manhã, novembro 10, 2006, Anonymous Anónimo said...

Espantoso!

 
At 6:14 da tarde, novembro 13, 2006, Anonymous Anónimo said...

Eu te amo

Tom Jobim - Chico Buarque
1980

Ah, se já perdemos a noção da hora
Se juntos já jogamos tudo fora
Me conta agora como hei de partir

Se, ao te conhecer, dei pra sonhar, fiz tantos desvarios
Rompi com o mundo, queimei meus navios
Me diz pra onde é que inda posso ir

Se nós, nas travessuras das noites eternas
Já confundimos tanto as nossas pernas
Diz com que pernas eu devo seguir

Se entornaste a nossa sorte pelo chão
Se na bagunça do teu coração
Meu sangue errou de veia e se perdeu

Como, se na desordem do armário embutido
Meu paletó enlaça o teu vestido
E o meu sapato inda pisa no teu

Como, se nos amamos feito dois pagãos
Teus seios inda estão nas minhas mãos
Me explica com que cara eu vou sair

Não, acho que estás te fazendo de tonta
Te dei meus olhos pra tomares conta
Agora conta como hei de partir

 
At 1:58 da tarde, novembro 20, 2006, Blogger Mendonça said...

OLá! Então safaste-te ontem lá no Acqua Roma (que bonito nome!)?
Vim aqui espreitar o blog e gostei muito deste... só me parece que andas a escrever muito sobre coisas tristes. Alegra-te que hoje está sol! :)
Beijocas

Titi

 
At 1:22 da manhã, novembro 27, 2006, Blogger Patrícia Martins said...

Inezinha, gosto muito do teu blog. Tão bom que é ler as palavras, os textos que partilhas aqui.
Continua, tens muitas coisas bonitas e inteligentes para tornares numa escrita interessante.

beijinho da "mana" Patusca

 

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