Fonte
A fonte era luminosa. Não deixava muito a desejar, mas sim água por transbordar. Era o meu sítio preferido, ficava horas lá sentada a admirar o cenário. As gotas escorridas, o violeta reflectido na água, eram portadoras de uma frescura matinal muito saborosa. Não havia vivalma, nem indícios de pegadas de animais. O rasto deixado pelos caminhantes já ia longe, deixava só o cheiro do almoço indiano que empestava as suas vestes. Naqueles espaços, o meu corpo divagava e levitava. Tornava-se só observador. O que custa mais é começar a ficar parado. Mas uma vez assim, sentimos que podemos fotografar o momento, suspender o tempo e sair um instante do filme, apesar de a bobine continuar sempre a girar. O realizador é desconhecido e eu quero ir lá entrevistá-lo. Deram-me o papel para a mão, mas não tive tempo de o decorar, às vezes jogo mais pela espontaneidade, acho que resulta. Mas quero fazer algumas perguntas que tenho preparadas na manga do robe, afinal tenho muita curiosidade. Ele está lá atrás do pano, o pano de boca, mas só o vemos através da lente da sua câmara, pelo que dizem nunca ninguém lhe viu o rosto, só desfocado. Ele tinha criado só para mim, imaginem, uma fonte. Era bonito o lugar, tão especial e eu agradecia como os japoneses. Retrocedia a marcha, baixava-me, curvava a cabeça e envolta num robe de seda, repetia "arigato", "arigato", até deslizar para o meu lugar, afinal já sem mais perguntas, sem mais hesitações. Conseguiram convencer-me? No final ouviam-se palmas, constantes e assobios, sem parar. E eu poderia sair de cena, tranquila, com a sensação do dever feito, descansada, e reconfortar-me-ia nos braços ilimitados deste autor da nossa vida.
3 Comments:
Gostei. É uma perspectiva original e diferente do palco da vida.
Uma fonte é a sede da sabedoria? Giro
Obrigada por lerem e comentarem.
Inês
Enviar um comentário
<< Home