c Trambolhão: agosto 2007

sexta-feira, agosto 24, 2007

Comandante

Deixaste os mares serem teus.
Trocaste velas por desejos,
Fizeste-te comandante e tomaste o rumo.
Estrela de mares,
Ou a Estrela do mar,
Eras um homem peixe solitário.
Reconhecia-se ao fundo,
o fumo espesso a sair do teu cachimbo,
Até que um dia a Deusa do mar Calypso
Te afogou em tormentas de alma,
Tão dolorosas de esquecer,
que preferiste a terra de manhã,
prolongada pela tarde cinzenta,
Até que a noite negra já não era embalada pelo torpor das águas.
Só era embalada pelo whisky profano,
Que te trazia de volta o sal quente do mar,
Que te fazia sentir de novo comandante,
De uma vida paralela.
Quando as gaivotas vinham pousar no teu ombro,
Tu contavas sete segredos com os dedos,
Que elas conheciam tão bem,
Porque companheiras foram de mitos marítimos.
Com os anos, a amizade dos poetas suavizou a garra,
E os laços da sua poesia amarraram-te com força à terra.
Deixaste-te ficar...

quarta-feira, agosto 22, 2007

Ai menina...
A velha irada agarrava as mãos à cabeça. Ai que me matas o coração. Ai que se me revolvem as entranhas. Não devia ter bebido a água pé. E suspira, curvando-se cada vez mais para o fundo do poço, só agarrada pelo cajado firme e pelos dois pés pequeninos.
Só se ouve o fungar ruidoso. Alterna assim entre o cansaço e a revolta. Ainda ontem nascias nos meus braços, enroladinha num papel de jornal. Ainda ontem me penteavas o cabelo como se fosse uma princesa e dizias que me construias um castelo só para mim quando fosses rica. Ainda ontem... E agora dizes-me que vais partir com aquele mixuruca? Aquele filhós, que nem aqui aparece para te defender? Olha a má fama que corre aí sobre ele não é coisa inventada, não. Eu que te criei sozinha, após o teu pai desandar daqui com outra. E curvava-se mais sobre o poço.
Irene quebrava no chão. Os pensamentos zurpavam a mil à hora. Ser uma boa filha. Honrar a mãe. Arranjar um trabalho. Carregar os burros. Enxotar as ovelhas. Tudo parecia minúsculo comparado com o seu amor. Ainda ontem ele lhe tinha dado um anel. De plástico, mas um anel qu fazia furor no seu dedo . Isso significaria com certeza alguma coisa. E a fotografia da casa onde iriam viver. Uma vivenda bem arranjadinha. E a mãe tinha as vizinhas. E o cão. E ao fim ao cabo só estariam separadas algumas horas de viagem. Afinal não era o rumo que a vida tem de tomar. Firme Irene firme. A velha curvava-se agora sobre os bicos dos pés. Conseguia ver o cabelo cinzento, sujo, e uma madeixa que caía suavemente sobre os traços marcados da sua cara. Soprava uma aragem suave do fundo. A água parecia tão cristalina. Irene virou costas. Chantagens é que não. A velha voltou-se e num acesso de ira empurrou Irene lá para dentro. Chafurda aí na água para ver se pões as idéias em ordem, chafurda.