c Trambolhão: novembro 2007

quinta-feira, novembro 29, 2007

Sentir

Desenhaste um círculo na areia com a mão direita.
Sentiste a venda preta a apertar-te os olhos.
Adoçaste a língua com um cubo de açúcar amarelo.
Abraçaste um urso de peluche cheio de pó.
Tocaste na tecla do piano com a ponta dos dedos.
Abriste o saco do café à bruta.
Encolheste a cabeça dentro do gorro de lã.
Embaciaste o espelho do elevador com o teu hálito.
Enterraste as botas na lama fresca.
Rasgaste o jornal velho em tiras desiguais.
Conduziste sobre as pedras rolantes na estrada inacabada.
Encheste as bochechas com água,
Pintaste os lábios sem cuidado.
Pintaste as paredes de vermelho,
Arrancaste uma flor da mãe.
Descobriste um trevo de quatro folhas.
E um anão mágico nas escadas.
No dia do casamento, gritaste SIM, não murmuraste sim.
Deitaste mel sobre os teus cabelos,
Fizeste o pino sobre as escadas,
Atiraste um tiro ao ar,
Brincaste aos cowboys com o Bang Bang,
Envolveste a cintura numa tira de seda,
Escreveste com o lápis a carvão na ardósia preta do quadro,
Fizeste chamadas anónimas ao teu amante e identificadas ao teu marido.
Sempre desenhaste formas imperfeitas na areia molhada.

sexta-feira, novembro 16, 2007

Espreita-se neles a sombra do amor. Abre-se uma nesguinha da porta e um coração quase que explode na nossa cara. Quando um homem ama, leva a sua amada em bicos de pés, como se se tratasse dum cristal. Pega nela devagarinho para não a partir ou magoar, leva-a na palma das mãos. Sentada na almofada ela sorri, e pode perder tempo com outros disparates. O homem às vezes vira costas e vai matar alguns inimigos, e atirar uns canhões e mostrar que é homem. E beber umas cervejolas. Mas se ele desistir de tudo só porque a sua mulher partiu uma unha, está condenado a amá-la durantes séculos de amor, reinventados em reencarnações supremas.

O amor dos homens é mais forte, é como uma rocha estável, é um amor feliz porque se resignou a amar aquela. E não a outra. As mulheres quando amam é mais fácil, sentem ondas de amor, que são contínuas, mas maleáveis, ondulam-se ao sabor do dia-a-dia, porque sabem que do outro lado existe um amor seguro, que as permite ondularem-se. Se alguns tempos atrás escrevi com raiva sobre o facto de os homens só me falarem de ex-namoradas, percebo agora, que o amor deles quando existe, é só um. Uno e indívisivel, para com aquela mulher. E que demora a passar, porque eles não querem largar o cristal, nem encontram espaço ou armários terrestres que o acolham facilmente.

sexta-feira, novembro 09, 2007

Culinária

O tempo escorre como fios de azeite entornados sob a água a ferver. Bolas de azeite gordas tombam em cima do alho esmurrado na pedra áspera da cozinha. A massa quebrada em dois espalha vestígios pelo chão, mais tarde colados a solas menos dóceis. Agarraste na trança tingida de preta e cortaste-a à bruta com a faca menos afiada da cozinha. Agora parecias um menino, igual ao teu gémeo. Com o coração na garganta, encurralado entre paredes estreitas, decoradas com azulejos batidos na vertical e migalhas implorando para ser engolidas na horizontal.
O canário preso sobe o tom à letra e funde-se na cor do armário amarelo. A touca da empregada esconde uma trança enrolada como uma serpente, tão igual à que tu tinhas. A pele rosada dela transpira o vapor dos cozinhados e as mãos gordurosas embalam o pão a subir ao forno, não tarda nada. Escondeste-te atrás da saia dela. Deixas que ela te despenteie o pouco cabelo que resta. Trazes uma carta escondida na mão, escrevinhada com letras tortas, só se percebe o arroz. Cozido, doce, ah, arroz doce. As mãos gordurosas enfiam-se no frasco do arroz. Os bagos ficam pegados, não caiem facilmente no tacho. Nem a água tira esta gordura brilhante, que teima em tornar-se baça. O leite, traz-me o leite. Estavas distraída. Sentada na mesa, lado a lado com o teu gémeo, controlavam ambos o ímpeto feroz de levar a garrafa de leite à boca. Olhavam um para o outro como que cowboys enfiados à força num rodeo silencioso. Tiras tu primeiro a mão, tiro eu segundo o braço. Rivalidades à parte, o sol descia a escada grande da casa e pelo corrimão trazia velozmente o calor para dentro de casa. Perdeste, gritaste. Sucumbiste e mataste a sede primeiro do que eu. Por isso perdeste. Os bancos oscilaram. Deixa-me em paz, gritou o gémeo. O arroz doce queimou-se. Não vieram a tempo de o trazer. Hoje em vez de leite creme queimado, há arroz doce queimado, gracejaste meu gemelo.
Cada dia trazem novas das casas ao lado. O canário canta alto que o Sr. Vizinho inundou a dispensa de jornais velhos e encheu de água. Fez um jacuzzi privativo ali ao lado. Porque vinha no jornal da região, a anunciar aliciantes propriedades rejuvenescedoras da pasta de papel para a pele. Um quarteirão abaixo, a Sra. Vizinha pendura a roupa no moinho de vento. Assim seca mais rápido, ouviu dizer na Direcção Geral de Energia. Dois blocos à frente, existe o Menino Vizinho, esquelético como um ramo de árvore, que traz dois altifalantes perto dos ouvidos, porque receia perder a notícia de que o rei de Portugal se dobrou a Espanha.
Soltos das amarras culinárias, lá bem no fundo da praia tomam banho os dois gémeos. Por fim, a empregada desembaraça o cabelo e solta a trança ao sal do mar. Os gémeos aprendem a nadar amparados nos cabelos longos e fortes, dando a pedalar os pés, que fortemente batem na água, embora sem grande efeito.

terça-feira, novembro 06, 2007

Era uma vez um saloio. Vendia muito pão, a troco de água benta. Precisava de água benta para se benzer constantemente, pois o diabo espreita em cada olho que passa. Fazia pão de todos os formatos, com cores diferentes e pesos semelhantes. Pão de centeio, pão integral, pão sem farinha para as senhoras com medo de engordar, pão com sal, pão sem sal para os hipertensos, pão de mação, pão de ló. Pão para comer à mesa, pão para digerir sentado. Um pão por dia basta para nos mantermos felizes, gritava num eco estridente que atravessava a praça durante o dia e durante a noite, numa tentativa esforçada e persistente de atrair novos fregueses. Amassava o pão à noite e de manhã punha o avental, montava a bicicleta transmontana, enchia os pulmões e pedalava. Atirava os pães como os distribuidores de jornais, sem dó nem piedade, estes chocavam contra as portas das residências adormecidas e acordavam os habitantes das suas casas.