c Trambolhão: novembro 2006

domingo, novembro 26, 2006

amoroso

Olha que bonitinho, quantas vezes não se sentiram assim apertados com um nó na garganta?

O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente
Cala: parece esquecer

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
Pra saber que a estão a amar!
Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar...

Fernando Pessoa

domingo, novembro 05, 2006

Solidão

Era um menino só.
Que vivia num mundo transparente mas opaco, numa clepsidra verde magnética como a cor dos seus olhos. Às escuras, acodia com os seus finos magros braços para chegar à luz do candeeiro no alto. E tirava fotografias muito depressa, cujo flash ininterrupto em cadência máxima registava o odor do primeiro fôlego, do dia em que cortou o cabelo denso, da t-shirt nova, do quarto sem móveis, do Verão a anunciar.
A personagem de tais composições era sempre a mesma, porventura, pioneira de um sonho sem cadência. Quando se sentia só, olhava para o album virtual e reconhecia-se na sua face branca, e arranjava assim desculpas para não aguentar a presença dos outros.
Mesmo no dia do seu aniversário, esta máquina tornava-se na sua melhor amiga.
Ela tinha 60 anos. Podia não tirar fotos mas a sua habitual presença no restaurante ao domingo registava um flash ininterrupto em cadência máxima. Sentada na mesa do costume, olhava o infinito e contemplava os botões da cadeira. Falava com o ar enquanto o marido folheava o jornal. As palavras sim e não eram essenciais, mas o resto não.
Adoçava sempre o café com restos de açúcar prendidos nos lábios secos e finos, pois este era o único momento da sua vida em que se podia adoçar mais, em que podia saborear sem se culpar de excessos, em que podia erguer a taça, sorrir e brindar ao despropósito. Neste jeito de menina, baralhava as pulseiras nos braços também finos, tentando seduzir embora sem êxito, o outro lado surdo e indiferente ao seu som charmante.
Após a sopa quente, seguia-se uma sobremesa e uma conta, que era sempre paga pelo Sr. Saíram ilesos, leves, frescos, como que soberanos de si próprios. O casal deu o braço, (o braço magro da Rosário ficara mais uma vez submerso) e ela lá foi puxada mais uma vez para a dança das vaidades mundana, de que se já se cansara há largos anos.
A franja da Irene era espessa. Uma cortina que se abatia sobre o mundo, como cortinados a bailar ao vento. Adormecia agarrada a um cobertor, com as mãos presas uma na outra. Era pequenina como uma formiga e andava sempre apoiada nos seus passinhos mínimos. Ela de facto não andava, saltitava como uma barboleta divertida. O seu hobby preferido era esculpir soldadinhos de madeira com a navalha, aliás já tinha conseguido reunir um exército navegante, cheio de força e ânimo para superar as calejadas dos meninos pequeninos. A Irene adorava pentear o cabelo vezes e vezes seguidas. E nunca despediçava uma oportunidade para espreitar com os olhos brilhantes o café do Sr. Mário. Nunca entrava, ficava à porta apoiada de bicos de pés, a espreitar. Meditava alguns segundos e suspirava sem cessar, contemplava o interior com aguçada curiosidade. Adorava espreitar o casal maravilha, tão elegante na sua pose, tão seguro, invejava secretamente a sua felicidade e a sua união, a sua cumplicidade. Era assim que imaginava o seu casamento secreto.
Neste momento regressava a casa. Pelo caminho lembrou-se de ligar ao seu irmão fotógrafo, para celebrar os seus 27 anos, e talvez assim, conseguir arrancá-lo da sua câmara escura para um café.