E esta hein
Um doente mental passeia pelo jardim da instituição onde está internado. Aproxima-se do gradeamento que separa o espaço da via pública e chama um indíviduo que está a passar. "Se faz favor". "Sim?" Responde o homem. "Pode esclarecer-me uma dúvida?" continua o doente. "Claro, diga". "Que raio está você a fazer aí dentro?"
in Expresso 30 Dezembro 2006
Tem dias
Porque a minha raiva crescia consoante o som da minha voz se elevava. Era uma raiva miudinha, que rapidamente podia atingir o tamanho de um gigante verde, parecido aos ogres dos filmes. Porque me apetece gritar e dizer o que penso. Acho que o mundo dos adultos é uma hipocrisia pegada, sorridos amarelos, benovolências e subserviências irritantes de tremer o pé. Está tudo bem, sim, claro, adoro o que faço, sim, mandem-me encher mais um caixote com selos de 16kg com seguro registado de x euros, embrulhar a milhésima encomenda de amostras que eu adoro, ou contar detergentes, essa sim é a parte melhor. De facto aprendi a analisar durante horas a fio enfiada numa cozinha, a composição química de cada um, o Sonasol verde é mais bem cheiroso e perfumado que o Lava lãs rosinha, mas espera, este último tem fosfatos. Drama, especulação, produto retirado do mercado. Os fosfatos caso não saibam são inimigos do meio-ambiente, mas há armadilhas porque também temos os fosfonatos. Calma, penso eu, são amigos, pelo menos o português é parecido.
E volta não volta, olho pela janela, que me chama a ver o mar, tão azul, mas ao mesmo tempo distante. Está calmo, acalma-me... Ou a planície verde sem fim, onde ninguém passeia. Ou os cães abandonados que adormecem ao sol perdido. Parecem-me felizes. Olho para o lado, mudaram-me a secretária, por pouco tempo. Tornei-me em 4 meses especialista em adaptação a novas salas de escritório, novas caras e novas tarefas. Ao menos neste aspecto não me posso queixar de tédio, a rotina é agitada e volta não volta o chefe, o big boss lá do centro revira tudo de pernas para o ar. Somos meros peões, dentro dum tabuleiro de xadrez cujos limites desconheço, não há tempo para pensar, só para adaptar. Na casinha do chefe trombudo, temos direito a sentarmo-nos 5 m na poltrona envernizada e com um aspecto meramente decorativo, porque se torna tão inconfortável o confronto com o outro lado, que a dita poltrona depressa nos enxota para a sala comum. E não convém ter pensamentos ruins, não é bom, porque há colegas com peso na consciência que conseguem ler os nossos pensamentos...E a motivação que nos dão é sempre a mesma, é um trabalho chato, monótono, desinteresssante, mas sabe Inês, alguém tem de o fazer. Ou eu avisei-a, eu disse que não era pera doce, mas pelo menos aqui está mais contente não é? Mas há sempre um rebuçado no final da história, aguente-se porque isto pode ser o começo de uma bonita história de amor, daqui a dez anos, pensamos no seu caso.
E eu volto a martelar na mesma tecla, porque será que não podemos dizer tudo o que pensamos? Ou pelo menos, eu conseguir dizer tudo o que penso. Talvez através da escrita consiga, digam-me vocês. Porque para mim os papéis em que eu mexo diariamente não têm alma, não me cantam canções de amor, não me levam às lágrimas, nem a abraçar a vida, são papéis, com palavras tão aborrecidas e desinteressantes que para mim é um alívio poder ir destruí-los à maquina trituradora. Livra, estes já não me perseguem nos meus sonhos hoje, já não há camiões, nem produtos, ou ordens do outro lado a comprometer os meus 5 m de pausa a olhar para o bendito mar. Um dia, envio um conjunto de telegramas anónimos e vou pensar que o que fazemos é realmente uma espécie de prostituição (onde é que eu já ouvi isto), eu vendo o meu trabalho, paguem-me e acabou-se a história. Precisamos deles, como nós deles, numa lógica triste, inumana, interesseira, mas eu não posso dizer muito, sou suspeita, vivo num mundo de fadas e às vezes não quero acordar.
Até amanhã...
Little Heart
Hoje estive a ver um documentário na televisão, que infelizmente não consegui ver do início ao fim por um lapso de distracção. Era interessante, mas fiquei a pensar sobre o dizia. Mostravam pessoas que tinham sido submetidas a um transplante de coração, por diversas razões. E qual não foi o meu espanto, quando referiam que sentiam mudanças na sua personalidade, nos seus gostos, na sua maneira de ser, que se tornaram idênticas às das pessoas que lhes doaram o respectivo orgão. Senão me engano, um dos testemunhos era de um senhor que era um homem de negócios e que passou a gostar mais de actividades radicais, semelhantes aos gosto que o seu dador tinha. E os exemplos multiplicavam-se, desde pessoas que se tinham tornado mais poéticas, mais sensíveis, mais aventureiras, entre outros.
Referiam mesmo que sentiam ser duas pessoas, sentiam que tinham de tomar conta do outro que vivia por baixo delas, e que integravam por isso duas mentalidades distintas.
O que os cientistas referem é que entre 5-10% dos doentes sentem mudanças de personalidade. Então o nosso coração é um orgão que emite memórias, sentimentos, emoções para o nosso cérebro? Afinal sempre tinham razão quando se diz que nos dói o coração, e que estamos mal de amores... O nosso amigo little heart não brinca, de facto, em serviço.